Escrito por Família Theia e Daniel Mori (psiquiatra)
Em 28 de Junho de 1969, às 1:20h, um grupo de policiais tentou invadir e extorquir os frequentadores do bar Stonewall Inn, em Nova York. Pela primeira vez, a comunidade LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros/travestis/ transexuais) frequentadora do local se opôs à ação policial, gerando uma série de motins e agressões físicas entre as autoridades e frequentadores que durou dias. Marsha P. Johnson, mulher negra travesti, foi uma das vozes líderes da chamada Rebelião de Stonewall. Exatamente um ano após o ocorrido, em 1970, a população LGBT da cidade se reuniu e saiu em marcha pelas ruas da cidade solicitando visibilidade, igualdade de direitos civis e respeito aos direitos humanos. Era a primeira parada do orgulho LGBT e a partir daí, 28 de Junho passa a se tornar o Dia Internacional do Orgulho LGBT.
Hoje, em 2020, o que precisamos saber sobre a sigla? Algumas definições básicas ajudam a entender o tema.
Ao nascermos, nos é reconhecido um sexo: masculino, feminino ou interssexual (ou desenvolvimento sexual diferente). Esse reconhecimento se dá com base em nossa anatomia, nas características daquele corpo que se desenvolveu influenciado por sua genética, expressão gênica, hormônios e todos os demais fatores que influenciam a formação de um corpo humano.
Ao redor dos 5 anos de idade, de acordo com o desenvolvimento neuropsíquico, adquirimos a capacidade de olhar ao redor e reconhecer diferentes anatomias, expressões, comportamentos, modos de existir e começamos a criar o nosso próprio. É o início do desenvolvimento da identidade de gênero. Portanto, identidade de gênero é o sentimento individual e subjetivo de pertencimento a um gênero: masculino ou feminino, por exemplo. Dentro dessa noção há fatores biológicos, psíquicos e sociais que irão influenciar esse determinante chamado gênero.
Para a maioria das pessoas, o sexo que lhe foi designado ao nascimento irá coincidir com a sua identidade de gênero, ao que chamamos cisgeneridade. Ao longo da vida, seja na infância, adolescência ou vida adulta, uma pessoa pode expressar sentimentos de inadequação entre o sexo que lhe foi designado ao nascimento e à sua identidade de gênero, ao que chamamos transgeneridade. E não há nada de novo ou de doente na transgeneridade, já que é observada desde os primórdios da existência humana e atravessa diferentes culturas e sociedades ao redor do mundo. É considerada, portanto, uma das possibilidades de diversidade humana.
"Transgênero" é uma palavra guarda-chuva que engloba todas as identidades de gênero não-cisgêneras, como a transexual, a travesti, a não-binária. Transexual é uma pessoa que vai de um gênero a outro, e pode fazer uso de hormônios e cirurgias para adequar seu corpo à sua identidade de gênero. Travesti é uma identidade de gênero feminina (por isso usamos sempre pronomes femininos) característica da cultura brasileira, com expressões de gênero femininas e que também pode recorrer a hormônios e mudanças corporais para expressar sua feminilidade. Identidades não-binárias são aquelas em que as pessoas transitam entre os gêneros ou não se reconhecem em nenhum dos gêneros. Toda identidade de gênero é autoatribuída, portanto, quem vai dizer se prefere ser reconhecido como transexual, travesti, ou não-binária é a própria pessoa.
Próximos à puberdade, desenvolvemos a capacidade de nos relacionarmos afetivamente e/ou sexualmente, em conjunto com as mudanças corporais que ocorrem também nesta fase. Quando uma pessoa possui um direcionamento afetivo-sexual para alguém do mesmo gênero, chamamos homossexual (gays e lésbicas, por exemplo); quando para um gênero oposto ao seu, heterossexual, e quando alguém possui uma orientação afetivo-sexual para o gênero masculino e o feminino, bissexual.
Forma-se a sigla LGBT, que pode ainda incluir outras letras. O Q, de queer, palavra sem uma tradução exata na língua portuguesa que significaria algo como “diferente" e representa as pessoas que vivem uma identidade não fixada nos padrões binários masculino/feminino de gênero. O I, de interssexual (ou desenvolvimento sexual diferente, como vimos nas possibilidades de determinantes de sexo acima). O A, de assexual, para uma orientação afetivo-sexual que não se direciona para nenhum dos gêneros, e pode ainda incluir o sinal de +, abarcando outras possibilidades de identidade de gênero e orientação sexual não-cisgênera e/ou não-heterossexual. Temos então o acrônimo completo LGBTQIA+.
E o que esse assunto tem a ver com o termo “ideologia de gênero”?
Nada. Este não é um termo técnico-científico e é descrito de maneira fantasiosa como uma forma de imposição de teorias ligadas à diferença entre os gêneros, políticas LGBTQIA+ ou assuntos ligados à diversidade humana nos mais diversos âmbitos da sociedade. Entretanto, é possível compreender que LGBTQIA+ estão lutando por respeito a alguns direitos humanos básicos como as pessoas heterossexuais e cisgêneras já têm contemplados. Direitos básicos como o reconhecimento legal de seus laços familiares e proteção à integridade física e moral. É preciso compreender que todos podem crer no que acharem mais adequado à sua filosofia de vida, suas morais e seus costumes e os direitos devem permitir essa diversidade, mas a linha que não se pode cruzar é aquela que separa as opiniões das discriminações.
Devido às discriminações, violações de direitos humanos, violência, bullying, expulsões de suas casas e dificuldade de acesso a direitos básicos como saúde e educação, pessoas LGBTs apresentam em média 4 vezes mais transtornos mentais que a população geral.
Geralmente, a sensação de inadequação, de diferença, de que “há algo de errado em mim por ser diferente da maioria”, de desconforto em relação ao próprio desenvolvimento do corpo, pode levar a sentimentos fortes de angústia, tristeza, irritabilidade, podendo culminar em episódios de depressão, ansiedade e tentativas de suicídio. Por isso, muitas vezes a necessidade de um acompanhamento em saúde mental ou com uma equipe multidisciplinar faz-se necessária. A maior evidência para uma melhor autoaceitação e prevenção de transtornos psiquiátricos é o apoio, suporte e acolhimento familiar.
Concluindo, há décadas a população LGBTQIA+ luta por maior inclusão, respeito, visibilidade e acesso a direitos humanos básicos. Vale lembrar que ser LGBTQIA+ em mais de 70 países ainda é crime e em muitos locais são privados de casamento civil, adoção, acesso à saúde, moradia e escolaridade. O Brasil amarga a triste marca de ser o país com o maior número de assassinatos de pessoas trans do mundo por ano, com uma expectativa média de vida de 35 anos para esta população. Reconhecer que precisamos melhorar, acolher e reconhecer essa população, respeitar todas as possibilidades de diversidade humana e repreender quaisquer formas de preconceito ou desrespeito, é também fazer parte dessa luta não só em 28/06, mas em todos os dias do ano.